sábado, 13 de outubro de 2012

Aprendendo com Kerouac

Posso dividir a minha vida em duas partes. Uma antes da estrada. Outra, depois da primeira vez que coloquei os pés nela e entendi que a vida é muito mais do que eu sempre aprendi na escola da sociedade. Foi estranho ver tudo que eu sempre tive como certo se desfazer por completo dentro da minha mente, mas uma sensação incrível de liberdade nasceu em mim ali, na estrada.
Foi onde tudo começou, minha vida tomando um novo nascimento.
A primeira vez que eu viajei foi num susto. "Preciso viajar, mãe! Eu vou ver o mundo", e fui. Nasci no planalto central, o coração do Brasil. Onde toda a mágica do país acontece, e vocês sabem de que mágica eu falo: a mágica de sumir com o que é público. Sendo assim, nunca tinha visto mais que isso: um horizonte onde uma colina é uma montanha que teve preguiça de crescer e, mesmo assim, é o maior monte que conhecemos. Com direito a todas as metáforas que puderem se encaixar.
Sempre senti uma inquietação em ver o grande, então a primeira vez que eu vi uma montanha foi impactante. Minha vida se repartiu.
Saí de casa aos 14 anos sozinha. Antes disso, minha vida estava toda traçada. Escola, faculdade, idade para casar, quantos filhos teria. Tudo certo e combinado como um tratado que você nem lê, apenas aceita e assina. A estrada desfez esse tratado sem direito de revogação. A estrada é o lugar das idéias, das possibilidades, do impossível e do infinito. Aos 14 anos eu percebi que eu podia ser mais do eu estava sendo, eu podia ser eu mesma, construir meus próprios sonhos, meu próprio eu, me descobrir, descobrir o mundo, viver, sentir, ver. Nada precisa ser ensaiado. Eu descobri que minha vida não precisava ser uma encenação do que foi ensaiado pelos antepassados. Ficou decidido que minha vida seria o esboço e a arte final que eu quisesse desenhar.
Eu estava no ônibus pensando sobre todas essas coisas. Todos dormiam e eu não conseguia parar de olhar pela janela a escuridão que havia lá fora, tudo que se passava e eu nunca tinha visto, tanta coisa que eu não conhecia apenas no meu país, imagina fora dele. Me apaixonei pelo desconhecido, senti uma necessidade enorme de ver com os meus olhos o mundo inteiro.
Fiquei instalada num albergue perto de uma favela onde conheci muita gente sofrida, gente brasileira. O quarto era pequeno e tinha apenas uma cama, uma mesinha de escrever e uma cômoda. O lugar não tinha nada demais, mas a cidade era bem diferente da minha cidade natal. Foram apenas 12 horas de viagem que me transformariam para toda a vida pelas pessoas e suas histórias. Creio que cada lugar tenha seu estereótipo de vida perfeita, aquilo que todos os pais sonham que seus filhos conquistem e todos os filhos sabem que não é aquela vida que querem, mas com o passar do tempo se tornam tão sem força para sonhar e lutar pelos sonhos que acabam cedendo. Não quero estereótipos, quero ser feliz. Percebi com aquelas pessoas que ser feliz é questão de escolha. Escolhi a minha felicidade.
Fiquei 22 dias naquela cidade fazendo trabalho voluntário, entendendo que muitas vezes tudo que as pessoas precisam é serem ouvidas. A humanidade está carente. Mas sempre arranjava um tempo livre para conhecer a cidade. Fui à museus, lugares históricos, parques, conheci muita gente e tudo isso de fato me mudou, me ensinou, me deu vida. Mas o mais incrível foi quando decidimos ir à um monte, um dos pontos turísticos de uma reserva natural. Eram os meus últimos dias de viagem e eu comecei a me perguntar se era hora de voltar mesmo, se realmente deveria voltar. A vontade de prosseguir era tão maior do que a saudade. Era um sentimento inexplicável, uma energia que parecia que não teria fim. Não é fugir do real. É fazer da sua realidade um sonho. Nossa percepção sobre o mundo pode ser tão maior. Há tanto a ser visto, não quero ficar presa à nenhuma raíz. Sentimento nenhum deve ser tão grande à ponto de te prender, pelo contrário, sentimentos devem te fazer voar.
Voltei para casa com todas as minhas certezas modificadas. Hoje, a unica certeza que tenho é de querer continuar sendo modificada pela estrada. Quero ultrapassar os limites da vida, da serenidade mental, da sobriedade. Voltei, mas meu coração continua na estrada. E cada vez que eu volto tenho mais certeza de que quero partir, não por minha realidade aqui ser ruim, mas por minha realidade lá não chegar nem perto de ser real.

Um comentário:

Maieh disse...

"Tudo certo e combinado como um tratado que você nem lê, apenas aceita e assina"
o melhor que eu já li até aqui... agora eu pergunto feito avó: de onde você tira essas coisas menina? ha... não importa, você ainda pensa muito sobre o que eu sinto, e escreve sobre o que eu não digo. Esse blog não é nem passatempo... é quase espelho. Lindo.